sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Hoje o dia desiste de acordar. Com os olhos cheios de névoa, tremula na cama descoberto, com preguiça, como se insista em ficar deitado, tentando um sono desesperado, mesmo com os ruídos lá de fora.

Saio para a horta na ponta dos pés. A cada tropeço olho para cima, vigiando pra ver se o barulho o fez acordar. Suspiro aliviado quando o vejo virar de lado com um bocejo. Sento-me ao lado dos brotos de batata e as nuvens de mãos dadas. Observo, como se um olhar fosse suficiente, recusando-me a me mover. Meus pensamentos se perdem quando dobram a direita, logo após a estreita passagem que fiz, para que só se passe pulando num pé.

Plantei algumas sementes de baobás na casa, entre a sala e a sábia imagem presa em madeiras de oliveira, perto da parede que arranquei, e de outra, ainda lá por descuido.

Coloquei o chapéu, a barba, minhas botas de pés descalços, atravessei o quintal e me sentei num degrau, observando-o acordar, num soluço.

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Com o tempo me acostumei com o barulho do vento que entra sem parar. O frio é companhia inestimável, já que faz abraçar-me em um quente conforto. Sem outros laços apertados, confundo-me neste interminável ‘eu’, distante do copo, do fogo, diante do violento espaço oco do vaso de flor, que teima um perfume entre o cheiro e a lembrança.

Acho que vi um dos gnomos sentados por ai. Óculos fortes, garrafa vazia de coca-cola na mão. Era como se olhasse para mim, e para o nada ao mesmo tempo. Passei olhando de canto, como se não fosse comigo. Nem insisti em voltar, talvez pra não ter que puxar assunto, ou atrever um simpático ‘bom dia’. Como se fosse necessário.

Ajoelhei-me diante da casa, sob a sobra da árvore. Fechei os olhos, juntei as mãos e traguei fundo o cigarro entre elas. Depois outro. Deixei-me ignorar pelo nada que acontecia em minha volta. Escutei cada ausência de barulho e me irritei com aquelas vozes inexistentes. Acabei por me desconcentrar.

Cocei a orelha enquanto voltava. Quando cheguei, já estava vermelha. Mal vi que já havia acabado.

terça-feira, 18 de agosto de 2009

Risquei, numa folha da árvore caída ao chão, um mapa marcando as moedas escondidas. Tive medo de esquecê-las, como tantas outras coisas jogadas aos cantos, fingindo disfarçar quando me vêem passando apressado, de um lado ao outro, devorando o piso sem perceber.

Tomo um trevo de três folhas, que nasce escondido no canto da casa. Rasgo uma de suas folhas, para que se tornem quatro, fingindo uma sorte qualquer, burlando a extraordinária verdade aflorada entre os goles ambiciosos de olhos atentos do outro lado da rua.

Sorri amareladamente, correndo pra me esconder debaixo dos cogumelos. Desce quase queimando a garganta. Paro e espero.

Saio cantando em línguas estranhas. Sem romãs ou travesseiros. Com um pé no chapéu, dedos virados pra trás, fumo um charuto dentro do cachimbo, um muro que atravesso com uma das mãos. Por descuido um ruído me distrai.

Um fio de cobre balançando ao longe.

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Lambi-me tal como um gato. Tentava tirar de mim esses dias carregados de distância, feito olhos de cereja, escorridos como rios vazios, que só vive uma estação por ano, deixando pro resto as pedras soltas.

Desisti dos santos de barros também, que de mim tiravam o primeiro e, às vezes, o último gole, já com a mão adormecida, deixando que tudo caísse sem perceber. Fiz dois gorros de folhas catadas por ai, umas verdes, outras amarelas, e botei neles. Viraram gnomos no meu jardim.

Não sei bem se grito para ouvir o eco nessa casa, ou simplesmente me apresso, cuspindo cinco ou seis palavras a mais do que o recomendado. Mas ninguém as ouve, e o prato ainda calado junta moscas barulhentas.

Sentei despreocupado, depois de arrancar a janela, pra deixar o vento entrar. Agora chega sem bater e nem me atormenta mais do que o frio que já faz aqui.

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Não transpirei uma gota de lucidez enquanto fechava o portão da casa atrás de mim. Também não era bem portão, era feito de madeira de lenha que queimava de vez em quando para aquecer minha ignorância. Às vezes construía outro. Noutras, recolhia o que sobrava, sabendo que ali estava um pouco menos de mim. Perdi-me enquanto caminhava de costas, procurando apontar aquilo que deixava pra trás, sorrindo enquanto soltava os espinhos do punho.

Regurgitei algum sentido literário. Eu era Samsa na sarjeta, sem sonhos inquietos, ou tanta chuva, numa curva suja, podre de restos sofridos de gente estranha.

Cheguei ainda vendo de onde parti. Não vi quem ali estava, não prometi nada a ninguém, tampouco me viram acenando com a boca ou mãos, qualquer coisa que poderia dizer algo. Talvez nem tenham me visto partir, enquanto fingia que estava chegando.

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

Dormi quase uma semana, enquanto tecia alguns trapos que serviriam para cobrir meu corpo. Fiz um rosto novo na parede ao lado, enquanto cobria o outro com um pouco do dia, que todo dia iria surgindo, sem calma.

Joguei algumas pedras dentro do meu sapato, calcei-os e passei a pisar firme. Trancei a barba esquecida ali, a crescer, dançando meus olhos sob as pálpebras, procurando sobreviventes entre as faltas cometidas no escuro, sem procurar, dessas verdades fingidas entre um gole lúcido e o devaneio do pensamento.

Iludi-me com tudo aquilo, transpirando ainda o cortejo, lembrando de mim esquecido, nesses dias, vestido de pele, com o frio alcançando os olhos destes que não me olham.